quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Viriato Gaspar: Uma nova viagem * LEOPOLDO GIL DULCIO VAZ/MA

Viriato Gaspar: Uma nova viagem
algo maior do que as lições dos livros: a importância de cultivar amizades. Talvez fosse

verdadeiras não envelhecem.

Elas resistem ao tempo, às distâncias, às transformações


POR LEOPOLDO GIL DULCIO VAZ

Hoje parti sem sair. O mundo lá fora é apenas reflexo do que não compreendo em mim. O silêncio me chamou pelo nome que nunca usei. Respondi com um verso.

Rezei ao nada. Não por falta de crença, mas por excesso de lucidez. O salmo que escrevi não louvava — ele chorava.

Meu corpo é cais. Mas a alma, embarcação sem vela. O vento que me move vem de dentro, e às vezes sopra contra.

Se o infinito maior é o homem, sou apenas um fragmento flutuante na margem do mistério. Mas sigo navegando. Porque há mares que só existem quando alguém ousa atravessá-los.

Cartografia do Silêncio

Navego em mim. Não há bússola. Só o eco de um nome que esqueci.

O coração — esse astrolábio partido — mede distâncias entre o que fui e o que ainda não sou. Há um deserto onde antes havia fé. E nele, um oásis de dúvida floresce.

Meus olhos não veem, mas pressentem. O invisível é o que mais pesa.

Sou feito de perguntas. De gravetos e ausências. De um salmo que não louva, mas espera.

E se o infinito maior é o homem, sou apenas um ponto flutuante na margem do mistério.

Viriato Gaspar foi um poeta e jornalista brasileiro nascido em São Luís, Maranhão, em 1952 e falecido em Brasília em 18 de setembro de 2025, aos 73 anos de idade.. Sua obra poética é marcada por uma profunda reflexão existencial e espiritual, explorando temas como fé, vazio, transcendência e a condição humana. Um dos seus textos mais emblemáticos é Salmo Zero, uma espécie de antissalmo que questiona, em vez de louvar, e mergulha no silêncio e na dúvida como formas de oração.

Entre seus livros de poesia estão: Manhã Portátil (1984); Onipresença (1986, versão incompleta; versão definitiva em

andamento); A Lâmina do Grito (1988); Sáfara Safra (1996); Fragmuitos de Mim (antologia em preparação)

Sua escrita é lírica, filosófica e muitas vezes marcada por uma linguagem inventiva e provocadora. Ele evoca figuras históricas

e políticas como Honestino Guimarães e Stuart Angel, misturando memória, crítica e espiritualidade.

Trajetória; Jornalista profissional desde 1970. Servidor público aposentado do Superior Tribunal de Justiça. Vencedor de diversos prêmios literários no Maranhão e em Brasília. Participou de mais de uma dezena de antologias poéticas

Viriato Gaspar foi um dos fundadores do movimento literário Antroponáutica, surgido no início da década de 1970 em São Luís, Maranhão2.

Movimento Antroponáutica - Origem: Criado


por jovens poetas maranhenses — Viriato Gaspar, Raimundo Fontenele, Chagas Val, Valdelino Cécio e Luís Augusto Cassas. Ano de início: Por volta de 1971, com encontros no bar "Canto da Viração", no centro de São Luís. Objetivo: Renovar

a poesia maranhense, rompendo com as escolas literárias do século XIX. Influências: Homenagem ao poeta Bandeira Tribuzzi (autor do poema "Antroponáutica") e admiração por nomes como Nauro Machado e José Chagas. Reconhecimento: Publicaram no Jornal do Dia e Jornal do Maranhão, lançaram a Antologia Poética do Movimento Antroponáutica e participaram da Antologia Hora do Guarnicê.

Esse movimento foi uma verdadeira ruptura estética e ideológica, trazendo ousadia poética em meio ao regime militar. Viriato Gaspar, com sua escrita intensa e filosófica, foi uma das vozes mais marcantes desse grupo.

O termo "antroponáutica" — criado por Tribuzzi

— sugere uma "navegação pelo homem", uma jornada interior e poética pela condição humana. Foi essa imagem que uniu jovens poetas como Viriato Gaspar, Raimundo Fontenele e outros em busca de uma nova estética literária no Maranhão.

Etimologia e sentido - "Antropo" vem do grego ánthrōpos, que significa homem ou ser humano. "Náutica" vem de nautikós, que se refere à navegação. Portanto, antroponáutica pode ser entendido como a navegação pelo interior do ser humano — uma jornada existencial, espiritual e poética através da condição humana.

No poema Antroponáutica, Tribuzzi encerra com o verso: "O infinito maior é o próprio homem." Esse verso resume a ideia central: o ser humano é um universo em si, capaz de explorar sua própria alma, seus limites, seus abismos e transcendências. A antroponáutica é essa viagem

— não pelas estrelas, mas pelo íntimo.

A ideia de antroponáutica — a viagem poética e filosófica pelo interior do ser humano — aparece de forma marcante nos poemas de

Viriato Gaspar, especialmente em sua linguagem introspectiva, existencial e muitas vezes espiritual. Ele não apenas escreve sobre o mundo, mas mergulha no "eu" como território de descoberta e inquietação.

Aqui estão alguns exemplos de como essa ideia se manifesta:

Exploração do eu como universo - "Secar por dentro o coração nos medos. Podar os brilhos. Largar as aparências. E o que sobrar no fim é a tua essência." — (Poema: Andando ao léu, com Rumi, pela tarde). Esse trecho é uma verdadeira antroponáutica: um despojamento das máscaras sociais para alcançar a essência do ser.

Viagem sem mapa, sem destino - "Iremos ao luar. Sem pressa alguma. Sem nenhuma intenção ou rumo certo. Nenhum mapa ou farol, nenhum roteiro." — (Poema: O Estrangeiro Soturno).

Aqui, a jornada é interior e simbólica — não há direção externa, apenas o movimento da alma.


Busca por sentido e transcendência - "Não há respostas prontas. Só perguntas. De gravetos e folhas já defuntas." — (Poema XI). A antroponáutica é também a recusa das certezas fáceis. Gaspar prefere o mistério, o questionamento, o silêncio que interroga.

Epifania e revelação - "Epifania de encharcar os dedos no que ninguém ousou nem viu

por onde. Essência. Caber esse orifácil tão difícil." — (Poema: A Ilha). Esse trecho é puro alumbramento: a revelação do invisível, o toque no indizível — uma viagem ao núcleo do humano.

Retrato do poeta como antroponauta - "Quase cego de ver por dentro o fora, meio surdo de ouvir inaudizíveis, de perscrutar silêncios e palavras." — (Poema: Retrato do Poeta Quando Velho). Gaspar se define como alguém que vê o mundo "por dentro", que ouve o que não se diz

— um verdadeiro navegante da alma. Esses versos mostram como Viriato Gaspar encarna a antroponáutica não apenas como

estética, mas como postura existencial. Ele é um poeta que navega o humano com coragem, delicadeza e profundidade.

A influência do movimento Antroponáutica e de poetas como Viriato Gaspar se estendeu para gerações posteriores da poesia maranhense e brasileira, especialmente entre autores que buscam uma escrita introspectiva, filosófica e crítica.

Embora não haja uma lista oficial de "discípulos" do movimento, podemos identificar ecos antroponautas em poetas que vieram depois e que dialogam com essa estética:

Poetas influenciados ou afinados com a Antroponáutica

Luís Augusto Cassas - Embora seja um dos fundadores do movimento, sua obra posterior manteve o espírito antroponauta, influenciando jovens poetas com sua linguagem experimental e crítica social.

Raimundo Fontenele - Também fundador, mas sua produção recente continua inspirando poetas contemporâneos com temas como solidão, transcendência e resistência.

Poetas da Antologia Hora do Guarnicê

- Essa coletânea reuniu os antroponautas com novos nomes da literatura maranhense, criando um elo entre gerações. Muitos desses jovens poetas absorveram a estética do movimento, como: Mário Luna, Valdelino Cécio, Chagas Val

Poetas contemporâneos maranhenses

- Embora não diretamente ligados

ao movimento, autores como Celso Borges, Ferreira Gullar (em sua fase tardia) e Zeca Baleiro (em sua poesia

musical) mostram traços de antroponáutica: introspecção, crítica existencial e linguagem inventiva.

Influência estética e temática; Linguagem fragmentada e lírica. Temas como o vazio, o silêncio, a dúvida e o sagrado profano.

Ruptura com formas clássicas e busca de uma poética do ser.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

sábado, 20 de setembro de 2025

VIRIATO GASPAR LITERATURA MARANHENSE * Fundação Claudino Silva

VIRIATO GASPAR LITERATURA MARANHENSE
VIRIATO GASPAR

(Viriato Santos Gaspar) – nasceu em São Luís (MA), em 7/3/1952. Radicado em Brasília desde agosto de 1978. Jornalista desde 1970. Funcionário de carreira do Superior Tribunal de Justiça. Participação em antologias poéticas no Maranhão e em Brasília. Vencedor de muitos prêmios literários, tanto em sua terra natal quanto no Distrito Federal. Bibliografia: Manhã Portátil, Gráfica SIOGE, São Luís-MA (1984); Onipresença (versão incompleta), Gráfica SIOGE, São Luís-MA (1986); A Lâmina do Grito, Gráfica SIOGE, São Luís-MA (1988), e Sáfara Safra, São Luís-MA (1996). Está concluindo um livro de Salmos em linguagem moderna, e tem dois livros de poemas e um de contos, inéditos.

Oswaldino Marques ao comentar textos de autores novos da Literatura Maranhense disse que o poeta “mais próximo da autonomia de vôo é Viriato Gaspar. Surpreende-se nele inventividade, assenhoreamento formal, linguagem plástica, límpida, a inteligência do metamorfismo da expressão que o dota dos meios de manipulação apurada da palavra.”

Lago Burnett: “...um poeta absolutamente senhor de seu instrumental.” Chagas Val, ao referir-se ao livro Manhã Portátil, declarou “... um livro forte e denso.” Moacyr Félix, “Com nitidez percebe-se, atrás do seu bem elaborado artesanato, a presença verdadeira de um poeta. Literatura e não literatice.” Wilson Pereira, “Manhã Portátil já revela a energia criadora do autor, dotado de sopro mágico e de capacidade para articular a linguagem com expressivos recursos estilísticos.”

"Só agora pude concluir a leitura do Tributo ao Poeta II. (...) Recordei e reli muita coisa conhecida, mas tive a deliciosa surpresa de descobrir o poeta Viriato Gaspar, cujos vigorosos versos me arrebataram preenchendo uma lacuna no meu elenco dos bons poetas contemporâneos." ASTRID CABRAL - Rio de Janeiro, maio de 2010

Página realizada com a colaboração de Salomão Sousa, Angélica Torres e de outras fontes.


TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL



Bilhete a Montale



Que tempo este de agora e suas redes.

O sol morre de frio e o mar, de sede.



Que mundo este, que encheu só de vazio.

A fome rói nas ruas seu fastio.



Goramos o luar; só resta um mantra,

e este gosto de agosto na garganta


A Caminho, de Volta



(a Odylo Costa, filho, in memoriam)



Os Anjos rasgarão nos meus cabelos

estradas para Deus, e seus atalhos.

Nas minhas mãos geladas trigo e orvalho

Deus plantará depois, para eu bebê-los.



Os Anjos brotarão dos meus joelhos

e cantarão manhãs que nunca pude.

Hão de nascer das plumas do alaúde

as rosas da manhã, clarins vermelhos.



Hei de cantar, cantar, cantar, cantar

as luzes que engasguei, por mundo ou medo,

os salmos que apaguei, por mal, por mim.



E os Anjos me erguerão na altriz do altar,

para eu sugar o Sol e arfar enfim

o sopro antigo e novo do Segredo.


A Sesta

(a Leonardo Boff)


Não quero abrir no azul um céu chinfrim,

que seja só um sol que nunca ladre.

Não quero um Deus assim, morto de mim,

cevado de senões, patrão de padres.



Eu quero O Deus em mim, total de tudo,

uma alva rede aberta em minha alma.

Um cachorro enrolado em seu veludo,

meu pai me dando adeus na tarde calma.


A Ilha


Janelas. Poeira. Mosquitos. Meu pai ventava em azul as paredes da insônia. Lamparinas. Calor. Formigas. Fome.

Os homens exercitavam vagas vidas vazias. Idéias. Ideais. Lixo. Luxo. Lisura espectral.

Uma rede sozinha. Var/ando a var anda. Var/ânsias. Átrios de igrejas. Sé. Carmo. Remédios. Pam ta leão. Garrafas. Gumes. Cuspo. Fé. Fezes.

Padre, dai-me a vossa bênção porque pe(s)quei. Ide em gás e que o terror vos arrebanhe. Mentiras. AMEN/tiras.

Os dias despejavam adrenalina. Ossos magros. Fome. Fumo. Fama. Fúria. Os homens inventavam teorias para explicar o medo. Mastigar o medo. O muco murcho da matilha amorfa. A porca era gorda demais. E a gente tinha fome.

As mulheres eram qualquer coisa secreta. Proibida. O veludo molhado da rosa incendiada na penugem. Uma dúzia de sonhos. Uma saga de dúvidas. Tesão. Teso. Ah ânsia de voar sobre as ladeiras e amanhecer assombros nos sobrados.

A vida era o desfiar morrente de uma esperança sem futuro. Ex-v(a)ida a cada dia. Como o rosário comprido de minha mãe. Deus era o pavor absoluto. O nome extremo do medo.

O sol sugava o sumo do suor do osso. Os outros, ostras incrustadas no estertor antigo. O coração ganindo a própria gana. A vida vindo em vão e vã voando. Veloz. Vaga. Vadia.

A casa era pequena, mas cabia a tosse de meu pai e a sua rede. O armador tecia na parede um gemido asmático de animal doméstico. A noite se enchia de calor e paz com o roc-roc-roc da velha rede de meu pai, insone.

O mundo era uma ilha sem horizontes. Os barcos passavam. Como os dias. O mar aberto era uma chaga alheia.

A vida era uma ilha. Afogada em seu fogo vazio.

A vida era uma

...

(a vida foi

se.)


A Vinda


Chegaste de manhã, e era dezembro.

O mar cuspia azul sobre as estrelas

e marejava um cais para bebê-las.

Teu rosto era um farol, é o que lembro.



Chegaste como a chuva; pelo avesso,

acendendo a manhã nas minhas unhas.

Agora foi depois, quando eu supunha

não mais molhar-me o sol, seu sal espesso.



Nunca disse teu nome, não cabia.

A palavra era apenas seu esgar,

um modo de morder a ventania.

Só lembro do dezembro. E então o mar.


O Náufrago


teu corpo negro iluminava tudo

com seus segredos fundos de mulher

e nele eu me enconchava em caramujo

no refluir-fruir dessa maré



de barcos emboscados no ar escuro

tarrafando sargaços de suor

teu corpo negro então ficava sujo

de claridade e desmanchava o sol



em golfadas de trêmulas espumas

teu corpo negro pluma de penumbra

a derramar manhãs no travesseiro



e eu náufrago de tudo arremetesse

as praias de teu corpo e me solvesse

nos minérios malinos de teus pêlos.

GASPAR, Viriato, Sáfara safra (poesia). São Luis, MA: SIOGE, 1994. 156 p, 14x20,5 cm.


O BUROCRATA

uma lua explode
por dentro do terno.

manda-a ao protocolo
para carimba-la
e num memorando
baixa-a ao arquivo.


A CAIXA-PRETA

o morto
no caixão

o porto
ou a floração?

(ou só o conforto
da conformação,

o tateio torto
pela contramão?)


GASPAR, Viriato. Manhã portátil. Poesias. São Luís, MA: Plano Editorial Gonçalves Dias, SIOGE, 1984. 135 p. 15x22 cm. Capa: Joaquim Santos. Col. Bibl. Antonio Miranda


ENTRONCAMENTO


outubro já passou, novembro veio,

e a vida continua pra dezembro.

dezembro chegará, depois janeiro,

e a vida continua em fevereiro.

o calentário espichará seus dias

em meses, anos, rugas e calvície,
novos amigos, novas descobertas,

(ou a simples ilusão de descobri-las),

novas cidades, novas desventuras,

novas mulheres e velhas ternuras.

e a vida seguirá por mais um ano,

mais outro e depois outro e a vida sempre

a encompridar seu tempo e seu fastio,

seu pasto de chacinas e vivências,

seus enganos, seus medos, seus abismos;

até que um dia a morte, enfim chegando,

(num dia de dezembro ou de janeiro),

acabe com a ciranda da agonia.

e quando o trem das trevas apitar

na esquina de meus ossos doloridos,

eu quero entrar sem pressa e sem bagagem,

como alguém que, depois de muitos anos.

retorna finalmente para casa.


De
A LÂMINA DO GRITO
(poesia)
São Luis: SECMA/SOPGE, 1988


3
(para Malu)

aqui, nesta argamassa de neurônios,
de músculos e nervos, pele e ossos,
eu e a minha manada de demônios
estamos sós no ranço dos remorsos.

estamos sós no cio solitário
do pus da nossa paz, fechada em fossos,
no pó das postas do que sobra em sócios
para o repasto oposto do inventário.

aqui, neste congresso de torturas,
sentamos, face a face, na impostura
de impar e ser o avesso do que somos.

enfartados de espantos e de espasmos,
eu e a minha alcatéia de fantasmas
choramos sós à sombra dos escombros.


21

primeiro ela sonhou que estava morta;
depois, que viajara, que partira,
mas não porque ela própria o decidira,
mas porque havia o mundo além da porta.

ela era a sombra do seu próprio vulto,
a imagem em nuvem do não-revelado.
ela era tudo o que restava oculto,
mas dentro dela mesma, em si guardado.

e porque assim tivesse sido (ou era),
ou nunca fosse, houvesse acontecido,
talvez mais por alvor que só de avara,

primeiro ela sonhou que não chegara,
depois, ao ver que ver era um olvido,
evaporou-se em sua própria espera.


27

inverno, meu amor, são esses ossos
que a tarde desenterra em nossas veias,
sempre sujos do sumo dos remorsos,
lambuzados de loucas luas cheias.

esse inverso, essa viva carne carma,
o punhal, esse sabre que nos sobra,
essa bomba que nunca se desarma,
esse dobre a dobrar-nos na manobra.

inverno são as drupas desses dias,
essas tardes tardias, trastes, tantas;
essas ruas repletas e vazias,
esta gana a ganir-nos na garganta.

inverno, meu amor: ossos e dias;
e a gente a gangorrar sua agonia.


30

(a Wilson Pereira)


Qualquer coisa nascida de si mesma
como um ovo, um poema, uma ferida.
Uma pena talvez, flecha fendida
em trovões coruscando em lã/ma e lesmas.

Qualquer coisa. Excrescente, dissoluta,
fluida, fóssil, falaz, como cortiça.
Manivela ou mormaço, a mó mortiça
do seu grito de gueto, escampa escuta.

Esse inverno vital, vulva que orvalha,
galha oblívia do sestro na navalha.
Uma coisa qualquer. Sabre em saliva.

Qualquer coisa cerzida em urze ou asa,
húmus ubre de rala ruma rasa:
▬ um verso, esse universo em carne viva.

(do livro “A LÂMINA DO GRITO”, de 1988)


31

o azul pondo fagulhas no azulejo
enquanto a tarde talha e a voz resvala
no silêncio estalado em caranguejos
e o breu do grito é o gume de uma bala.

o azul tecendo lu(r)zes nos sobrados
e as ruas estuando em treva as teias.
a sombra é um búzio dúbio debruado
na renda rubra da paisagem alheia.

o azul espelha paz no pó espesso
enquanto as aves voam em vão no avesso
e o instante estanca e tranca o trinco a seco.

o azul plantando (p)lumes nos telhados
e a tarde entalha o instante ali alado
e enlaça o aço azedo enchendo os becos.


POEMAS INÉDITOS
(selecionados por Angélica Torres Lima)


A QUERELA DO BAR ZIL

As ruas estão rotas de mendigos,
de putas e ladrões mal-ajambrados.
Os que se deram bem vão bem guardados,
no além das limusines, em abrigo.

Nas praças só há pressa, e o medo empurra
o bilro em nossas burras, ‘té a monta.
Em cada esquina um rambo nos aponta
um berro, e basta a nós se só nos curra.

Nos palácios, nos templos, nas choupanas,
é um salve-se quem der a xepa ou a xana,
a vida vale um peido, um troco, um til.

Há quem ferrando enrique ou nasce a lula,
mas nas ruas é a fome, é a gana, a gula,
oh pátria amada, à puta que pariu!


O NINHO

Olha, lá fora, a trôpega manada
que marcha, amorfa, à usura do futuro.
Vê com que pressa passam na calçada,
rumo a um arrimo esconso em seu escuro.

Olha, aqui dentro, o ninho do meu vinho,
o chão deste clarão, esta tontura.
Vê com que vôo as aves da ternura
rasgam seus ramos no meu ser sozinho.

Ferve um inferno fosco no lá fora:
aqui dentro, eu Te espero.
Agora.
Aurora.


BILHETE À ROSA QUE ACENDEU O JARDIM

Tive um amor que desmanchou-se ao vento,
mal soprara a manhã nos meus cabelos.
Tentei talvez, a susto, ainda retê-lo,
mas dissolveu-se em azul no céu cinzento.

Tive um amor que encheu o mundo inteiro
de um brilho, um fogo, um gás, um chão tão claro,
que até hoje, já escuro, ao relembrá-lo,
ainda me acende o rastro do seu cheiro.

Tive um amor assim, estranha estiva,
a farfalhar seu mar em carne viva,
o mundo em riste a borbulhar nas veias.

O amor, no entanto, é um sopro que se apouca;
no instante mesmo em que nos bica a boca
já se ave em vôo, e nunca mais se apeia.


NOITURNO

A rua espicha as casas sonolentas
pela ladeira suja enevoada.
Só meus passos, no pasmo da calçada,
ressoam mundo afora, à flor do vento.

A rua se esparrama escuro adentro,
uma ruma de casas desbotadas.
Só a lua na rua amortalhada
me vê passar sem pressa, a contra vento.

De onde eu vim, para onde vou, pisando
o mundo mudo, a rua morta, e eu quando?

Só meus passos no escuro acendem o vento
e toc toc tocam no silêncio.


O JATOBÁ TOMBADO

A doença foi secando a minha mãe,
até torná-la a sombra dela mesma.
Na sua solidão de dor enferma,
um mar de arpões-ferrões nas suas manhãs.

Na mirrada figura que sumia
um pouco mais, a cada abril do dia,
havia um horizonte de sereno,
grandeza no exercício do pequeno.

Minha mãe me ensinou, com a dor e a reza,
que sempre há vôo e luz, se a vida pesa.


RÚMULOS

Por aqu
passou o Poeta:

▬ há cacos de estrelas
acendendo o escuro;
há um brilho estranho
no pavor dos muros,
e há um viço avesso
acordando o mundo.
O Poeta
passou por este dia:

fez brotar a manhã
da noite fria,
fez nascer um clarão
no breu que havia
e surgir em cada dor
como um jardim,
para depois,
um raio, um risco ou um jasmim,
encantar-se por fim
na ventania.


O LEGADO

(a Gabriel)

aquele poema
que não consegui,
mas a duras penas
carreguei em mim.
aquela pequena
coisa indefinida,
que não foi poema
nem encheu a vida.
o sol escondido
que não se acendeu.
este não ter sido
que em mim sou eu.

(de Sáfara Safra )


ÍNDICE


A Ferreira Gullar

O homem é a matéria do meu canto,
qualquer que seja a cor do que ele sente.
E não importa o motivo do seu pranto,
é um homem, meu irmão, e estou doente
de sua dor, e é meu o seu espanto
do mundo e desta hora incongruentes.
Na trincheira do Verbo me levanto
contra o que contra o homem se intente.
O homem é o objeto e o objetivo
de quanto sei cantar, e o canto é tudo
que pode me explicar porque estou vivo.
Às vezes sou ateu, noutras sou crente,
em outras sou rebelde, em algumas mudo:
— sou homem, e canto o homem no presente.

(de Manhã Portátil)




Antonio Miranda, diretor da Biblioteca Nacional de Brasília, abrindo a sessão do Tributo ao Poeta, dedicada a Viriato Gaspar, no dia 31 de março de 2009.



Atores e o homenageado no palco do auditório da BNB (com o poeta ao centro) recebendo o aplauso da platéia em dia de casa cheia e ovação de pé, depois da leitura dos poemas. Uma noite verdadeiramente consagradora ao talento do poeta maranhense-brasiliense Viriato Gaspar. Da esquerda à direita os poetas: Antonio Miranda, Wilson Pereira, Aglaia Souza, o homenageado Viriato Gaspar, Carla Andrade e Vicente Sá. Os apresentadores dos textos foram Wilson, Aglaia, Carla e Vicente, e o apresentador foi Anderson Braga Horta.

FONTE
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